Entrevista con Gonzalo Márquez - Correspondências entre poesia e ação


Fotografía: Alejandro Zenker

Conducción: Floriano Martins

FM - De todos os poetas de tua geração, em ti encontro o melhor exemplo de uma poesia que se propõe um salto no abismo, ou seja, uma poesia que não é só um embate com as palavras e os conceitos arrolados à sua volta, mas antes, bem antes, uma poesia que busca uma nova fonte de vertigem, uma poesia do assombro diante da existência humana. De onde vem essa fonte de abismos?
GMC - Assim como Zarathustra é um perseguidor de ápices, à minha poesia, como à de vários autores deste século, há restado a opção, talvez mais humana - para dizê-lo com palavras de Octavio Paz -, de dançar sobre o abismo, de nos entregarmos à sua vertigem fundadora, à sua intensa experiência onde cresce o olhar. Todos os atos importantes do homem passam pelo túnel do medo (refiro-me ao amor, ao misticismo, à arte e a todas as duas buscas utópicas), e penso como Perse, que assim como a ciência busca no dia, o poeta é quem indaga na noite, nessa insaciável fonte de sombras, de temores. Creio que por trás de toda experiência dos limites sempre espreita a morte, que nos define, que conhece nosso rosto verdadeiro, que nos põe na boca uma palavra, um nome - se temos sorte -, que nos resume, que nos explica. Sobra dizer que minha condição de colombiano acrescenta a violência ao meu olhar, porque nesta convivência tão estreita com o horror poderíamos dizer, com René Char - cito de memória -: quando a morte é mais violenta a vida está melhor definida. E querer responder a pergunta da morte, tentar atualizar as interrogações primogênitas, essenciais do ser humana, talvez seja, às vezes, vislumbrar entre tremores, fazer um brinde ao medo, assistir à festa do abismo…


FM - Toda poesia é sumo de inquietudes e afinidades. Em teu caso, percebo um particular interesse por poetas como René Char e Roberto Juarroz. Não propriamente pelo tratamento da linguagem, mas antes por aquela correspondência entre poesia e ação formulada por ambos. O que percebes ser a poesia que escreves?
GMC - O escritor chileno José Donoso, durante sua efêmera passagem por Bogotá, há quinze anos, sentenciou: querer ser original é querer ser medíocre. Isto, desde já, é um tributo à tradição, à literatura com seus grandes mestres e às afinidades e coincidências que temos com nossos queridos antecessores. Tem sido dito que a literatura parte mais da literatura do que da experiência pessoal do escritor, e que a maioria dos livros falidos o são porque seu autor não soube abolir as referências com sua própria realidade, não conseguiu realizar o distanciamento com sua experiência interior. Tem sido dito que se um personagem fala como uma pessoa real não teria eficácia e que o exercício da literatura é como aprender outro idioma e isto parece claro quando se lê Mallarmé ou Valéry, e a poetas intertextuais como Eliot e Pound, onde são mais importantes as referências às literaturas anteriores e o ensamblaje que realizam a partir dali do que o que eles próprios vieram a dizer. No entanto, tu falas especificamente de René Char e Roberto Juarroz, que são dois poetas que sempre me deslumbraram. Em ambos encontro a palavra poética convertida em um signo agudo, em indagação filosófica, em reflexão, em riqueza prismática, em agregado ao pensamento do homem. Talvez Char seja um poeta que provém mais da imagem e da riqueza do ambíguo, enquanto que Juarroz seja mais da transparência da idéia, de seu fascinante jogo poético; mas ambos acreditaram na correspondência entre poesia e ação, como o fez Rimbaud . Quando a poesia se aventura ao fulgor da imagem primitiva, a essa indissolúvel identidade que existia para o homem primitivo entre palavra e objeto, e assim pretende cativar as perguntas essenciais do homem que, segundo parece, nunca possuem resposta, torna-se profecia, horizonte, bússola interior… Creio em uma poesia das profundidades, do ser, do tempo, que tente traduzir a morte… E quanto à tua pergunta sobre o que percebo ser minha poesia, suspeito que estou demasiado envolvido para responder e, para te dizer com eficácia, primeiro teria que me submeter à abolição do eu que promulgava Buda, o Iluminado, e começar por compreender um mundo com seis pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste, acima e abaixo, para então poder realizar a dissolução de minha identidade. E é certo, enquanto no Ocidente falemos de quatro pontos cardeais, só poderemos chegar com certeza à Disneylandia, mas nunca ao Nirvana, ao silêncio, à liberdade ou ao amor.


FM - Como se explica a ponte entre Apocalipsis de la rosa (1990) e El tempestario y otros relatos (1998), uma vez que a narrativa predomina sobre este último, o que não acontecia com o intermediário Ritual de títeres (1992), que melhor se definiria como poemas em prosa?
GMC - Em Apocalipsis de la rosa, editado pela primeira vez há quase onze anos, submergi no bachelardiano tempo vertical do poema, em sua incessante e múltipla fonte de assombros, e creio que este espaço literário é verdadeiramente meu elemento. Ritual de títeres, meu segundo livro, é uma experimentação anti-narrativa, na qual cada vez que se assume um capítulo o acontecimento já ocorreu e resta apenas a sensação e a reflexão. É uma sistemática indagação na imagem poética e na idéia, e jamais, em suas duzentas páginas, se tem a intenção de narrar ou descrever e, como tu mesmo já o disseste, poderia ser realmente um poema romanceado. É a negação do personagem para impor a supremacia do achado poético e filosófico. E por último, El tempestario y otros relatos, é uma exploração decididamente mais narrativa, mas talvez se pareça mais com o espaço do fotográfico ou do pictórico, e todos os seus argumentos, muitas vezes dentro do universo do fantástico, estão habitados por silêncios, matizes, sonhos, imagens e reflexões que fluem de meu mais vívido espaço poético. E, para ser mais explícito, embora todas as ficções de El tempestario habitem o tempo horizontal inerente à narração, estão pervertidas, desviadas, subjugadas por uma escritura proveniente da poesia. De qualquer forma, creio que escrever - sem importar o gênero literário escolhido -, conto, novela, ensaio…, é a mais estranha forma da solidão, da ausência, e a mais inútil tentativa de conhecer a morte, e isso condiciona toda a minha literatura.


FM - Há um verso em Apocalipsis de la rosa (1990) que destaco: “el regreso / es apenas el sueño de los ríos”. O que tem essa afirmação de contrastante com tua busca de registro de vozes poéticas essenciais à compreensão de nosso tempo [refiro-me às tuas entrevistas]?
GMC - O regresso é a comprovação de que o devir é incessante e que a não-presença pode delatar, em uma cidade ou em um rosto, alguns signos alterados… E desta forma a única opção de continuar no espaço de nossos amigos ou de nossos amores é convertendo-nos todos em Heráclitos capazes de nadar ao mesmo ritmo da corrente. É permanecer na mesma água pela força de correr em idêntica velocidade Quanto à minha obstinada busca por entrevistar autores capazes de nos mostrar com suas reflexões o tempo em que fraquejamos, experiência que é mais uma viagem do que um retorno, talvez sendo uma cumplicidade interior de nosso extravio, eu a entendo como uma homenagem a todos aqueles que forjaram nossa geografia sensível, que acreditaram que a linguagem ainda consegue nos tornar livres e que a palavra pode nos guiar como a lâmpada de Diógenes a uma voz que às vezes pode nos salvar.



FM - Quero que me fales dessa aventura das viagens em busca de entrevistas. Tenho entrevistado através de cartas e prefiro o distanciamento justamente por permitir um aprofundamento de idéias. No entanto, tens realizado algumas entrevistas (Octavio Paz , Juan García Ponce, Cioran, Salvador Elizondo, Carlos Fuentes, Oswaldo Guayasamín…), que não se dariam de outra maneira se não estivesses ali.
GMC - Meu encontro com Cioran, em Paris, é uma experiência essencial em minha vida. Depois de haver recebido uma carta - diante de minha perplexidade -, onde o consagrado filósofo romeno enviava um texto inédito para o projeto de nossa revista, estar em sua água-furtada da rue de l’Odeón, excedia minhas expectativas. Esta criança escatológica, este insubornável espírito irônico, este teólogo da desesperação, resultou ser um homem de luz, habitado por uma incorruptível felicidade, e por uma ternura e uma lúdica embriagadora. Durante quase duas horas rimos de sua obstinada decisão de caluniar o universo. Esta entrevista essencial que foi publicada em quatro países e em três idiomas se intitula: «Adeus e muita ironia».
Octavio Paz, por uma estranha artimanha do acaso, nos recebeu em seu apartamento da Reforma, na capital mexicana, dois dias antes de completar seus oitenta anos. E este homem, com sua cabeça de totem pré-colombiano, desdobrou sua incansável lucidez falando do tempo, da poesia, da necessidade de legalizar a droga, e nos mostrou sua diligente imaginação e capacidade reflexiva para debater sobre os problemas do pensamento e fazer frente a esse equívoco que se denominou história.
Juan García Ponce, o grande romancista mexicano, vítima de uma paralisia degenerativa que, em outubro de 1993 –no momento da entrevista– já lhe estava ganhando a língua, nos manteve suspensos durante mais de uma hora na qual festejamos seu tema preferido: o erotismo. Salvador Elizondo, debaixo de uma árvore em sua casa em Coyoacán, no México, lamentou que já não proibissem os livros para lê-los com maior avidez e nos mostrou, em um aquário, esses peixes quase míticos chamados ajolotes, que o próprio Julio Cortázar havia incluído em um de seus mais famosos relatos. Oswaldo Guayasamín, em seu estúdio de Quito, quando íamos fotografá-lo retirava da mesa as carteiras de cigarros dizendo que não queria aparecer retratado ao lado da única coisa que devia aos gringos: seu ruivo tabaco… Bem, penso em Juarroz, em Olga Orozco, em Roger Munier, no grande poeta português Antonio Ramos Rosa, nos venezuelanos: Eugenio Montejo , Silva Estrada e no pintor Jacobo Borges, e em outros extraordinários artistas que entrevistamos para nossa revista Común Presencia, e que nos deram a certeza de nosso universal, incorrigível e lúcido equívoco.


FM - Na verdade, ao propiciar um encontro, não fazemos senão afirmar nossa confiança no assombro, na surpresa. Em meu caso, tenho feito entrevistas quase sempre em função de sua publicação conjunta, idealizando um livro como mesa de encontro entre vários poetas. O que buscas essencialmente ao entrevistar um poeta?
GMC - Embora as entrevista tenham sido publicadas primeiramente em nossa revista Común Presencia, ou em outras revistas latino-americanas, perseguindo convencer o anônimo leitor de aproximar-se de uma determinada voz, ou rendendo homenagem a um poeta que nos aumenta, confesso que padeço de tua mesma idealização de poder compilá-las posteriormente em um livro que, sem dúvida, postularia o encontro de visões diversas e de pensamentos coincidentes ou complementares sobre o tempo e a palavra que nos tem tocado viver. E, para completa a resposta, ao entrevistar um poeta busco compartilhar meu silêncio, fazer-me cúmplice de seus questionamentos, participar da ceia de seus sonhos, da devoração de seus fantasmas.


FM - Desde 1988 editas a revista Común presencia, ao lado da poeta Amparo Osorio. Suponho que em tuas viagens tenhas estabelecido alguns encontros com outros editores de revistas. Em que circunstância surgiu Común presencia em Bogotá, e quais suas relações possíveis com outras publicações na América Latina?
GMC - Como qualquer revista de seu caráter, Común Presencia é uma ilha onde sempre devemos chegar os náufragos. Há dez anos apareceu pela primeira vez e, apesar de épocas em que não é possível editá-la, persistimos ainda em manter aberta esta janela essencial, espaço que nos parece agora mais urgente que no momento de sua fundação. Quando as Leituras literárias dos jornais hispano-americanos estão tomados por orientações excludentes ou frívolas, e quando vivemos o reino da cultura light, uma revista de criação que busca zonas abissais, que tenta manter incandescentes as pequenas zonas do pensamento e da imaginação que o capitalismo em sua voracidade não conseguiu reduzir ou assimilar, nos parece uma aventura inobjetável.


FM - O que tem garantido a permanência de Común Presencia durante toda uma década?
GMC - Creio que o medo que nunca diminui… Que - como Sherazade - somente sabemos combatê-lo com palavras. E a infantil crença de que enquanto existe a revista, aqueles que a urdimos e os que a lêem com paixão teremos lugar para o assombro e a esperança.